26 de dez. de 2013

Mandela e a história como ela foi

Com Nelson Mandela enterrado, é necessário que se avalie a trivialização que marcou a sua agonia e morte. Passado meio século desde o julgamento de Rivonia, que resultou na sua prisão por 27 anos, impressionou o juízo quase unânime de que o mundo perdia um dos seus grandes líderes políticos.
Nem sempre foi assim. Nos anos que se seguiram ao julgamento, a avaliação sobre Nelson Mandela no Ocidente era de que se tratava de um terrorista, aliado aos comunistas, talvez ele mesmo membro do partido, justamente condenado à prisão perpétua. A complacência com o apartheid nos EUA e no Reino Unido era grotesca. Só lentamente ganhou espaço a condenação do apartheid e, em última instância, do regime político que assegurava o controle da minoria branca.
O regime do apartheid estava enraizado na política britânica desde o começo do século passado, quando foi sancionado o controle político dos afrikaners. A União Sul-africana, criada em 1910, herdou a legislação racista das regiões controladas pelos afrikaners e, em seguida, restringiu ainda mais a propriedade da terra por africanos e aumentou a tributação. Era essencial dispor de mão de obra nativa para a agricultura e a mineração. Tudo isso culminou, em 1948, na cristalização do apartheid. A revolta da população não branca ganhou força gradativamente, sempre marcada por violenta repressão governamental, que culminou no massacre de Sharpeville, em 1960. A violência racial de Estado perdurou até o começo dos anos 90.
A opção do Congresso Nacional Africano (CNA) pela luta armada no início da década de 1960 deve ser entendida nesse contexto. Não havia indícios de que a via exclusivamente política pudesse prosperar. O apoio internacional ao CNA não veio de Washington, mas de Moscou. O partido político que apoiou o CNA foi o Partido Comunista da África do Sul. Os EUA e o Reino Unido foram relutantes quanto à imposição de sanções à África do Sul do apartheid e fechavam os olhos à agressividade da África do Sul, como por exemplo na Namíbia. Ainda em 1974, a estratégia dos EUA no sul da África reforçava a influência de Pretória, apoiando a tentativa de intervenção de tropas sul-africanas em Angola para impedir a vitória do MPLA, de orientação marxista. Só foi detida pela intervenção de tropas cubanas. A constatação pode incomodar, mas, com todos os seus problemas, o retrospecto cubano na região é melhor do que o dos EUA. E não é que o arrependimento dos EUA tenha vindo logo. Como lembrou Dorrit Harazim, em seu bom artigo no jornal O Globo de 15/12, foi George W. Bush que, em 2008, afinal retirou o nome de Mandela da lista de terroristas da Homeland Security.
O movimento da opinião pública mundial rumo à unanimidade quanto a Mandela lembra outros episódios nos quais a passagem do tempo alterou crucialmente a percepção dos fatos. Entre muitos episódios, podemos escolher a resistência francesa aos ocupantes alemães. Em 1944, eram alguns milhares de resistentes, em 1945 algumas dezenas de milhares, depois centenas de milhares, na maioria imaginários. Nem mesmo esforços críticos, como o memorável filme Le chagrin et la pitié (A tristeza e a compaixão), foram capazes de fazer as avaliações históricas recuperarem uma perspectiva aceitável. O passar do tempo embrutece e favorece o oportunismo, tanto em relação à resistência francesa quanto à carreira de Mandela.
Mandela foi um verdadeiro herói do nosso tempo. Ocupa um lugar entre a meia dúzia de estadistas mais proeminentes do século 20. Foi o fundador da África do Sul moderna e, também, inspirador em escala mundial, também nos EUA, da ascensão política das populações negras. E foi o Mandela de Rivonia que tornou possível o Mandela que viabilizou o "milagre" da transição política e econômica da África do Sul. Não há certeza de que o resultado perdure, mas foi um magnífico começo.
DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

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